Nonato Reis (*)
A construção da
rodovia MA-014, ligando Vitória do Mearim a Pinheiro, virou uma página
marcada por tragédias, agonia e sofrimento. Antes dela, a ligação da
Baixada Maranhense com a capital, São Luís, só era possível por meio de
embarcações rústicas a motor, em viagens que duravam até cinco dias,
navegando por rios e canais, até desembocar no Golfão Maranhense e fazer
a perigosa travessia da Baía de São Marcos, para enfim aportar na Rampa
Campos Melo.
A viagem, repleta de
obstáculos e contratempos, mais parecia um rali aquático. À espera de
marés, as lanchas precisavam fundear por até doze horas. Os passageiros
se obrigavam a conviver com galinhas, porcos, cabras, bois e cavalos, em
meio a ruídos e odores que faziam embrulhar o estômago.
À noite era uma
algazarra dos diabos com o barulho dos animais, incomodados com aquele
ambiente insólito, ávidos por se livrarem do cativeiro.
A etapa mais aguardada
e temida era a passagem do Boqueirão, um canal entre duas ilhas, já nas
vizinhanças de São Luís, próximo ao Porto do Itaqui. Ali as ondas, de
tão revoltas, costumavam penetrar a embarcação e promover um sacolejo
infernal. Certa vez, indo para Viana, o comandante da lancha Marissol
teve a “brilhante” ideia de mandar servir o jantar justo na hora em que
cruzávamos o Boqueirão.
Vi pratos sendo
arremessados na água como se fossem discos voadores, rodopiando sobre o
próprio eixo. O meu só não teve o mesmo destino, porque o apoiei com uma
das mãos, enquanto me segurava com a outra mão em uma viga do toldo.
Contornar a ilha do
Tauá Mirim era outro suplício. O trecho da baía ali parecia dotado de
uma energia sobrenatural, que provocavam ondas enormes. Eu tinha pavor
de passar por lá, em face de uma lembrança trágica. Nas suas vizinhanças
a lancha Proteção de São José bateu em um banco de areia e partiu-se ao
meio. Dezenas de pessoas perderam a vida. Foi uma comoção que
repercutiu por semanas e alimentou o noticiário diário de rádios e
jornais.
Um sujeito chamado
Torquato, negro, alto, atlético, que morava no Ibacazinho, conseguiu
sobreviver ao naufrágio. Virou uma espécie de mito. Ele contava que
dormia quando a lancha foi a pique. Despertou no fundo do mar. Com
esforço supremo se libertou da embarcação e veio à tona. Nadou a noite
toda com um maço de dinheiro preso aos dentes. No ambiente escuro feito
breu orientava-se apenas pelo clarão dos raios, que riscavam o céu a
todo momento. Quando, enfim, alcançou terra firme desmaiou e ali ficou,
exausto, por um tempo insondável, recompondo as forças.
Cruzar a baía de São
Marcos constituía um ato quase heróico, que tirava o sono dos
passageiros e podia causar estresse e até depressão. Eram noites mal
dormidas e marcadas por medo, ansiedade. Menos para o meu pai, que
tirava a viagem de letra e, durante o percurso, dormia feito um anjo.
Meu avô materno, que tinha pavor de viajar de lancha, contava uma
estória engraçada.
Os dois, que se
tratavam por compadre, fizeram juntos uma viagem de Viana para São Luís.
O sol ia a pino e meu pai dormia o sono dos justos. O motor da lancha
começou a ratear e a soltar blocos de fumaça negra. Assustado, meu avô
sacudiu a rede do meu pai, despertando-o. “O que foi, compadre?”,
perguntou meu pai, entre desperto e dormindo. “Compadre, a coisa da
feia! O motor da lancha está fumaçando!”, ao que meu pai balbuciou: “Não
é nada, compadre”, e voltou a dormir.
Na última viagem que
fiz de lancha entre Viana e São Luís, tive a companhia de Marcos Muniz,
que era casado com uma tia minha. Noite alta, eu dormia. Ele me acordou,
com o semblante assustado. “Nonato, a lancha encalhou em um banco de
areia. Estamos em perigo!”. Eu me lembrei da estória do meu pai e segui
seu exemplo. “Não há de ser nada, Marcos. Durma”. Quando abri os olhos,
novamente, a lancha acabava de ancorar na Praia Grande.
(*) Poeta e escritor.
0 Comentários